Aos Olhos de Quem Vê

Para quem leu o texto " O tempo" e gostou, aqui vem mais um conto da mesma autora: Angélica Vidal.


Aos Olhos de Quem Vê

A vela pinga, o menino sopra, a cera seca, o menino toca.


Ainda era dia e de nada serviria aquele toco de vela gasto. E mesmo que já fosse noite, não daria pra ver quase nada do quintal enorme. Um ventinho morno soprou o rosto do menino, fazendo o cabelo, duro de tanta sujeira, balançar um pouco. Com a mão livre, ele arrumou o cabelo num gesto quase involuntário. O desenho que fazia era mais importante.
E ele não notou na formiga caminhando pelo papel, muito menos no homem sentado alguns metros a sua frente. De fraque, cartola e relógio na mão, Tempo assistia aos movimentos do garoto como quem assiste a um filme.

A vela pinga, o menino sopra, a cera seca, o menino toca.

Um pingo cai no dedo do menino, ele geme. No mesmo instante a vela é colocada ao seu lado e a tábua cai do outro. O dedo é enrolado pela camisa imunda e pressionado pela outra mão. Mas a ansiedade do menino é maior do que a dor do dedo e a tábua logo volta ao seu lugar. Com as duas mãos ele tateia o papel para voltar a posição original, em seguida pega a vela com cuidado e ela volta ao seu trabalho de pingar.

Tempo suspira baixinho (ele não quer atrapalhar o menino). Porém ele, o Tempo, sabe que se avançar um único passo que seja, a vela apaga; entretanto, ficar ali, parado, também é errado. Mas o que fazer? O homem admira o menino e, por isso, espera.

A vela pinga, o menino sopra, a cera seca, o menino toca.

O sorriso no rosto do menino (e também no do Tempo) aumenta ao passo que o desenho chega ao seu fim. Um último pingo e o menino deixa a vela ao lado. Vendo isso, Tempo levanta-se, o vento sopra, a vela se apaga e o desenho voa.

Inutilmente o menino ergue as mãos, mas a folha que procura já está nas mãos enluvadas do Tempo, fora de seu alcance.

“Você sabia, não é? Eu não podia terminar este também...”

Lamentava-se o menino.

“Nosso trato. Ou então estaremos contradizendo as ordens do Destino...”

O menino fitava o nada, mantendo a cabeça baixa. Tempo sorriu, da mesma forma que sorriria um pai ao ver o filho amadurecer.

“Um dia você vai conhecer a sua galeria.”

E o menino estava só, com os olhos brilhantes de emoção. Enxugou as lágrimas com a camisa suja e assim que abriu os olhos, por um segundo, ele viu a vela.

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